­

Notícias

Acompanhe e reveja todas as iniciativas desenvolvidas pela Delegação Regional da Madeira da Ordem dos Economistas.

Diz a sabedoria popular que, quando ralham as comadres, se descobrem as verdades. Diz a realidade recente que, quando ralham dois primos Espírito Santo, há um grupo económico que vai à falência. E esse é o facto económico do ano.
 
Há um ano, escrevendo o texto para esta mesma eleição, citei uma série de acontecimentos que haviam marcado internamente 2013. Neles não incluí o diferendo que, em Novembro, levaria José Maria Ricciardi a pedir o afastamento do primo Ricardo Salgado. Confesso: pareceu-me uma querela familiar, qualquer coisa ao estilo da série televisiva Dallas. Jamais imaginaria que um ano depois estaria a invocar esse episódio como primeiro sintoma de que algo ia mal no reino dos Espírito Santo. Ou segundo, se nos recordarmos do caso Monte Branco. Ou terceiro, se acrescentarmos as várias declarações de IRS de Ricardo Salgado, que não conseguia acertar com os rendimentos. Ou… Não vamos fazer a cronologia dos eventos. Uma rápida pesquisa na internet devolve-nos centenas de resultados, onde nem faltam transcrições das actas das reuniões entre os cinco ramos da família. E há uma comissão de inquérito parlamentar, a maior de sempre, a decorrer, em que todas as datas são discutidas, apesar de, às vezes, com respostas como “12 de Outubro de dois mil e… não me lembro do ano”. O que me importa aqui – e que justifica a sua escolha – é o que este facto económico mostra sobre o funcionamento do país.
 
E mostra, desde logo, que há uma enorme promiscuidade entre poder político e poder económico. Não fomos apanhados desprevenidos, já sabíamos que assim era: o país é pequeno e o Estado demasiado presente, o que propicia esta troca mútua de favores. Já Rothschild observava “dêem-me o controlo do dinheiro de uma nação e pouco me importarei com quem faz as suas leis". Mas, quando é o DDT em causa, percebemos que é uma promiscuidade com direito a transmissão de DST . Ricardo Salgado bem pode dizer que o epíteto lhe foi atribuído para o prejudicar, mas, conforme declarou, “Estivemos [os Espírito Santo] na monarquia, na implantação da República, na ditadura, nas nacionalizações deixámos de estar porque tivemos de emigrar, quando voltámos com as privatizações continuámos a dialogar com todos os governos, seja de um partido ou de outro”. Curiosamente, foi o único com quem José Sócrates quis dialogar quando procurava evitar a vinda do FMI. Ou não tão curioso se atendermos a que o BES aprovou muitos financiamentos ao sector empresarial do Estado, muitas vezes antecipando-se à própria CGD. De resto, o nome Espírito Santo aparece nos curriculum vitæ de vários Ministros e Secretários de Estado; aparece nos casos Portucale, Operação Furacão, dos submarinos, das fraudes na gestão dos CTT ou da venda das acções da EDP pelo BES Vida; aparece a discordar da OPA sobre a PT lançada pela Sonaecom, a mesma que o Governo travou. Por isso, a resolução do BES fez a capa da Euromoney de Outubro e levou esta revista a falar da “queda dramática da coisa mais parecida com um oligarca que havia em Portugal”.
 
Mas mostra também a qualidade (a falta de) da gestão empresarial portuguesa (de alguma dela, pelo menos). Eventuais fraudes, evasões fiscais e lavagens de dinheiro à parte, o GES estava organizado num esquema em cascata que permitiu à família controlar os negócios com pouco capital. Aqui vale a pena lembrar que, na sequência do 25 de Abril, a banca foi nacionalizada e que a sua “restituição” foi feita com um programa de privatizações que obrigou os expropriados a se endividarem para recuperarem o que havia sido seu. A partir daí foi uma sucessão de negócios ruinosos, operações e investimentos que não geravam o necessário cash-flow e que obrigaram a mais dívida. Prejuízos que não eram assumidos e passivos escondidos por um organograma impenetrável, distribuído por várias praças financeiras e com contabilidade pouco transparente. A que seria desmascarada se o BES tem recorrido ao apoio público, conforme fizeram outras instituições. Por isso, a solução foi deitar mais achas para a fogueira: transferiram-se passivos da ESI para a Rioforte e puseram-se a ESFG e o BES a financiarem as holdings de cima, numa estratégia que contaminou todo o grupo e expôs os próprios clientes do banco ao risco. Pelo caminho, ainda convenceram a administração da PT – a tal que foi premiada e louvada – a aplicar 897 milhões em papel comercial de uma empresa falida. O meu lado condescendente vai admitir que se trata apenas de muita incompetência…
 
O engraçado – que nenhuma graça tem – é que tudo isto só se descobriu devido às desavenças de Ricardo Salgado com Pedro Queiroz Pereira, Álvaro Sobrinho e José Maria Ricciardi. Apesar de envolver um banco, que é uma empresa teoricamente sujeita a forte regulação e escrutínio. Teoricamente. Porque outro aspecto que nos mostra o facto económico do ano é que a regulação falhou. O editorial do New York Times disse-o e apontou o dedo à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional, que “estiveram intimamente envolvidos na economia e no sistema financeiro português nos últimos três anos”. Eu vou-me ficar pela supervisão aquém-fronteiras. E também aqui não há grandes surpresas, embora nos possamos questionar como se aprendeu tão pouco com a falência do BPN. Como nota o Luís Aguiar-Conraria, “dado que Portugal não tem moeda própria, a única função do Banco de Portugal é a regulação e supervisão do sistema bancário. O Banco de Portugal tem 1700 funcionários, quatro vezes mais que o Banco Central da Suécia, que, lembre-se, tem de gerir a sua moeda, a coroa sueca.” E, no entanto, quando é preciso fazer uma auditoria a uma instituição bancária há que recorrer a uma consultora, tipicamente à Deloitte, à KPMG ou à PwC. Que são também quem, tipicamente, audita as contas dos bancos, a pedido dos próprios e depois de eles assinarem uma declaração em como elas não têm qualquer responsabilidade pelas contas que autenticam. Contas essas que o Banco de Portugal assume estarem bem feitas e serem sérias. Quando desconfia que não são, bom, nesse caso, pode usar de um instrumento conhecido por persuasão moral. Ou seja, tentar, com jeitinho (ou negando registos para o desempenho de funções), que o banqueiro saia do seu cargo. Este pode, por sua vez, depois de ver a certificação de contas que comprou ser posta em causa, comprar uns pareceres de idoneidade. Confesso que fico confusa sobre os poderes de que efectivamente dispõe o Banco de Portugal. Percebemos que não é o de impedir um aumento de capital: esse ninguém detém, nem a própria CMVM, que só é chamada a pronunciar-se sobre o prospecto informativo. Neste idiossincrásico modelo de supervisão português, fico confusa também sobre quem supervisiona quem. Uma confusão que se agudiza quando vejo nomes a passar de regulador para regulado, para consultora, para Governo e vice-versa.
 
E assim se faz o retrato do país. Se fossem comadres a ralhar, a verdade viria ao de cima. Neste caso, espero que ela surja, até porque há uma comissão parlamentar de inquérito a decorrer – a maior da história das comissões parlamentares de inquérito – e, por muito entretenimento de qualidade que nos proporcione (e tem proporcionado momentos muito interessantes), o objectivo é o de apurar os factos. Todos os factos. E as devidas responsabilidades, claro, mas essas há muito que, no nosso país, seguem uma tendência que agora se verifica: não se casam, ficam solteiras. Mais importante é saber o que mudou: o banco do regime caiu, mas caiu o regime com ele? Seria bom falar deste facto daqui a um ano, na eleição de 2015, como marco de um novo Portugal, que não queira quem seja o dono dele todo. Demasiado optimismo até para a quadra natalícia, não é?! 
 
Nota explicativa:
DDT - Dono Disto Tudo
DST - Doenças sexualmente transmissíveis
 
Vera Gouveia Barros
 
Nota: Vera Gouveia Barros escreve com a ortografia anterior ao acordo de 1990.
­